Pessoas e cães
É inevitável que, falando do comportamento do cão e da relação que o une a nós, nos interroguemos com questões deste tipo: o meu cão é inteligente? Qual é o grau de consciência do cão? Têm sentimentos e emoções? Gosta de mim? E, se é assim, porquê? Na realidade, não há estudos científicos que respondam a estas perguntas, o que há são apenas hipóteses baseadas em observações.
Limitar-nos-emos a expor aqui as conclusões baseadas na nossa experiência pessoal e na de quem está próximo e convive com cães, animais que tivemos a sorte de conhecer ou que nos acompanharam durante uma época da nossa vida.
O melhor amigo do Homem
A afirmação "o cão é o melhor amigo do Homem" não é um lugar comum; é uma afirmação demonstrada pela história e pelos factos. Que se trata de um amigo fiel é indubitável, não sendo necessário para o demonstrar mencionar os numerosos episódios de heroísmo e de abnegação de que este animal foi protagonista. Mas é também capaz de adivinhar os nossos estados de ânimo no momento e de se adaptar à situação; por último, é capaz de actos de coragem extrema ao ponto de - já aconteceu com frequência - sacrificar a sua vida pela do seu dono.
Mas, a que se devem sentimentos tão leais? A que devemos este amor incondicional? Qual a melhor forma de lhe corresponder?
'Os cães domésticos passam uma grande parte do seu tempo na companhia de seres humanos, sem possibilidade de manter contactos sociais com os seus congéneres. A domesticação teve o efeito de habituar os cães a considerarem os seres humanos como indivíduos pertencentes à sua própria espécie e à família com a qual vivem como a matilha de que fazem parte.
É necessário sobretudo sublinhar que um cão tem a necessidade básica não só de fazer parte de uma matilha, mas de ter um chefe de matilha, isto é, um indivíduo dominante que possa entendê-lo e comportar-se face a ele com justiça (do ponto de vista canino, entenda-se). Quanto mais "justos" e constantes formos na nossa relação com o nosso companheiro, tanto mais será capaz de nos devolver uma dedicação e um afecto que causa espanto inclusive ao coração mais duro.
Instinto / Consciência
Um cão não é uma coisa inanimada, mas possui um enorme coração, sentimentos, e é um ser vivo e pensante que é capaz de dar muito mais do que receber. Além disso, está quase sempre indefeso face aos seres humanos. Tudo isto era já sabido entre os nossos ancestrais, que, em alguns casos, instituíram leis especialmente severas (como os antigos egípcios) contra os que maltratavam animais como o cão e o gato e que, nos casos mais graves, previam inclusive a pena de morte.
Sem chegar a tanto, bastará garantir ao nosso amigo de quatro patas esse mínimo de segurança e de conforto de que tanto necessita e essa taxa de lealdade suficiente para corresponder à que ele nos dispensa sempre.
No entanto, muitas vezes os seres humanos esquecem estas obrigações comportam-se de modo cruel perante tanta lealdade: existem episódios na crónica quotidiana que vão desde maus tratos físicos à falta de nutrição e ao abandono.
A que se deve tanta crueldade insensível por parte dos seres humanos?
É difícil encontrar uma resposta, uma vez que se trata, visivelmente, de um comportamento antinatural não só do ponto de vista canino.
Talvez se deva ao facto de, durante séculos, os seres humanos considerarem os cães, e os animais em geral, como seres sem alma nem emoção, como "coisas" incapazes de possuir sentimentos, úteis enquanto realizavam determinadas tarefas, puros e simples incómodos de que se podia prescindir.
Atribuir aos animais consciência, sentimentos e emoções é considerado por muitas pessoas como uma tentativa de antropomorfizar o mundo circundante, tendo em conta que hoje são mui- tos os que estão convencidos de que a consciência e a capacidade de formular raciocínios, sentir emoções e sentimentos são um privilégio exclusivo dos seres humanos.
Aos nossos olhos, assim como aos olhos de muitos etólogos contemporâneos, é uma completa falsidade, carecendo também de base científica: graças à evolução, os seres humanos transformaram-se no que são, isto é, agudizaram o pensamento e, graças à interacção social, desenvolveram uma consciência.
Os pensamentos e as emoções têm, pois, um valor evolutivo: os instintos primitivos, postos à prova pela experiência, aperfeiçoam-se através da inteligência, tornam-se raciocínio e este leva a mente a formular pensamentos que permitem a análise da realidade e a solução de problemas progressivamente bastante mais complexos.
Este mecanismo é também válido para os animais. No decurso da evolução, a criação de regras de convivência social (na comunidade humana, assim como nas alcateias de lobos), a adopção de comportamentos ditados pela experiência, a exigência de perpetuação da espécie nas melhores condições, associada à experimentação directa de emoções positivas e negativas e à capacidade de adaptação a situações mais diversas, favoreceram a adopção de uma ética do comportamento que, transmitida através do ADN, se tornou a parte do património de uma determinada espécie. Trata-se de algo mais do que de simples instinto de sobrevivência e aproxima-se muito do conceito de consciência que pertence não só aos seres humanos mas também a todos os outros seres vivos com maior grau de evolução, os seres possuidores de um cérebro bem desenvolvido e de um coração repleto de emoções.
Mas é amor verdadeiro?
Definir como amor verdadeiro o vínculo especial que une um cão ao seu companheiro humano não é, do nosso ponto de vista, arriscado, dado que, apesar de ser bastante difícil explicar esta noção tão subjectiva e inapreensível, é inegável que foi tradicionalmente associado à mãe natureza e à harmonia das coisas. Se pensarmos na definição que os dicionários costumam incluir sob o termo amor, "dedicação apaixonada e exclusiva, instintiva e intuitiva, virada para assegurar a felicidade recíproca e o bem-estar", não é isso precisamente o que um cão sente pelo seu dono? Por que é que o cão ama tanto os seres humanos? Como já indicámos, o cão descende do lobo e é, por conseguinte, um animal de matilha. Além disso, ao longo dos séculos adoptou o nosso mundo como o seu habitat natural.
'As experiências e as observações fizeram-no entender que os seres humanos se desenvolvem melhor do que ele neste âmbito, ao ponto de o ter forjado segundo as nossas exigências. Somos mais fortes e superiores do que ele: não é por acaso que obtivemos o título de chefes da matilha. O cão entendeu, pois, até que ponto somos essenciais para a sobrevivência da sua espécie, de modo que, em muitos casos, a simples relação de afecto transforma-se em autêntica veneração: alguns cães consideram os seus companheiros humanos como se fossem deuses e só vivem para eles.
Além disso, um cão tem muito mais necessidade de nós que nós dele (como fica demonstrado pelo grande número de casos de crueldade que mencionámos anteriormente), crê-nos omnipotentes e embora o nosso comportamento seja para ele quase sempre incompreensível, adapta-se: não pode fazer outra coisa.
A inteligência
Darwin considerava os animais domésticos como exemplares perfeitos para o estudo das capacidades mentais e, analisando o número de palavras e de frases (humanas) que os cães são capazes de distinguir, tinha chegado à conclusão de que o seu domínio da linguagem era comparável à de uma criança de 1 ano. Morgan, um estudioso do século XIX do comportamento animal, repreendia os seus Terrier - que não tinham sido capazes de passar um longo pau através de um tubo estreito - porque não tinham posto
todo o empenho em realizar a tarefa. Isto demonstra como é fácil ter opiniões erradas sobre a capacidade intelectual dos animais. Não só confundimos a capacidade mental com a capacidade de adestramento, sendo estes dois conceitos bem diferentes, mas também de uma forma muito absurda actuamos como se pedíssemos a uma criança de 1 ano que aprendesse a linguagem dos cães ou, pelo menos uma parte, quando nem os adultos são capazes de tal coisa.
'Nos últimos tempos os psicólogos dividiram-se em duas correntes. Uma defendia uma abordagem evolucionista, que se baseia na medida das dimensões do cérebro, inclusive tendo em conta que o cérebro dos animais é diferente segundo as espécies. Demonstraram que o EQ (quociente de encefalização) dos canídeos é superior em cerca de 38 % ao dos felídeos: os cães e os lobos têm também um córtice pré-frontal particularmente desenvolvido, o que se relaciona" provavelmente, com o complexo sistema social que regula a sua vida.
A segunda corrente defende uma abordagem ecológica, que define a inteligência como a capacidade que os animais têm para se adaptar a diferentes situações e às mudanças que se produzem no seu habitat. Neste último caso, os cães demonstraram ter uma série de "capacidades ecológicas acrescentadas (isto é, capacidade de elaborar conceitos de quantidade, semelhança, diferença, de formular autênticas deduções intuitivas e lógicas) muito especiais, tendo em conta que, graças à sua enorme capacidade de adaptação, conseguiram transformar o habitat humano no seu próprio habitat, num ecossistema em que podem sobreviver e procriar com normalidade.
Na realidade, muitos aspectos cognitivos referentes aos cães continuam, em boa parte, por explorar e estes animais, pelo que sabemos até hoje, poderiam ter uma capacidade mental muito superior e muito mais complexa do que os estudiosos foram capazes de investigar e medir até agora.
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